quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Lacaniano de Passo Fundo

O psicanalista Mário Corso entrevista, para o Cultura,(Caderno de Cultura, Zero Hora, Porto Alegre) o Dr. Taurino Netto, conhecido como o lacaniano de Passo Fundo, patrão e fundador do Centro de Tradições Psicanalíticas Gaúchas – Proseando nos pelego É um contraponto ao Analista de Bagé, do Luiz Fernando Veríssimo.

Mário Corso: O Sr foi analisado pelo Analista de Bagé, como discípulo dele, considera que a teoria do joelhaço segue válida?
Taurino Netto: O joelhaço é a grande contribuição psicanalítica que o Rio Grande deu ao mundo, infelizmente ainda não foi reconhecida. Apenas tenho um senão com o Dr. de Bagé a respeito do croque. Não creio que se deva dar croque em paciente, isso puxa o lado criança dele, infantiliza o vivente. Temos que tratá-lo como gente grande, caso precisar dum corretivo o padrão é sentá o rebenque, coisa de adulto para adulto.
Mário Corso: Ainda que mal lhe pergunte, não tem muito gaúcho que acha que análise é frescura?
Taurino Netto: Todo mundo pensa assim até que a vida te chama na chincha, aí coisa é diferente. Quando, por exemplo, a prenda foi embora, ou um ente querido vai pros pagos do Patrão-Grande, ou ainda um filho saiu chambão e maconheiro. Nessas horas em que o vivente se sente esquilado pelo destino, ele afroxa o garrão e vem aprumá as idéias nos pelego do analista. Até por que, não tem por que um bagual ficar macambúzio e sentindo um minuano gelado na alma assim, sem serventia.
Mário Corso: Existem novas formas de neurose nos tempos atuais?
Taurino Netto: Foi bom me perguntar, até desenvolvi um conceito para isso, é a "Síndrome de Guaxismo". Tu sabes que guaxo é o que nasce pelos cantos sem ninguém cuidar, ou bicho que teve mãe postiça. Pois bem, o gaúcho foi pra cidade e se perdeu do chão da querência. Como não cultiva as coisas da terra, se sente sem raiz, sem pai nem mãe. Sente que ninguém cuida dele e que já não pertence a nada. Enfim, vai ficando mais perdido que cusco em tiroteio, e se não se cuida, tu sabes, de haragano prá boletero é uma orelha. Depois disso só maneando e chá de vara de marmelo.
Mário Corso: E antes que isso aconteça?
Taurino Netto: Pra prevenir é bom chimarrão, arroz de carreteiro, escutar uns discos do Noel Guarani e andar a cavalo. Feito isso, tá pelada a coruja.
Mário Corso: O que o Sr. acha dos recentes avanços na medicação?
Taurino Netto: Pois olha, eu ainda sô mais dos chás. Esses dias mesmo curei uma guria com carqueja. Veio pras consultas reclamar do mundo, do marido, dos pais, tudo era ruim. Pois pedi que cada dia tomasse três xícaras de chá de carqueja bem forte, uma ao acordar, depois pela tarde e a última pela noite. Passou um mês e ela ali só sapateando no meu saco, falando de tudo de ruim que os outros eram. Até que um dia ela diz que o chá não estava dando resultado, ela estava igual e que o chá era flor de ruim. E eu lhe disse que o chá não era para ela melhorar. E ela me pergunta: - pra que é então? Isso é prá tu ver como tu é com os outros, guria! Ela me responde: - eu sou como chá de carqueja? Pior, lhe digo, ao menos carqueja faz bem pros rins. Saiu batendo a porta, e mais sem graça que trote de vaca, mas nas sessões seguintes já estava mais pra chá de macela.
Mário Corso: Quem lhe parece que necessita de análise?
Taurino Netto: A neurose é quando o índio se atrapalha sozinho, quando não precisa de inimigo. Tu sabes que têm uns cuera que se enroscam as boleadeiras nas próprias pernas e a vida não vai pra frente nem pra trás. Pois os psicanalistas estão aqui pra desinliá o vivente, para que ele possa retomar as rédeas do seu destino. Demora um pouco por que neurose é coisa mais embretada que rato em guampa, e o analista tem que ter mais paciência que tropeiro de lesma.
Mário Corso: O Sr. tem outra teoria em desenvolvimento?
Taurino Netto: Estou trabalhando na definição da "Personalidade Carrapato" é o que mais tem hoje em dia. Sabe esses tipo que não conseguem ficar sozinhos, que não fazem nada, mas nada mesmo da vida, só enche a paciência dos em volta. Por isso é a "Personalidade Carrapato", vive do sangue e da vida dos outros, parece que veio para vida a passeio. E também ando lidando no aperfeiçoamento de um conceito: quem é mais vaqueano em psicanálise sabe que embora o joelhaço seja a contribuição mais conhecida, ela é técnica, e não se compara à contribuição teórica que o Analista de Bagé nos deu com a descoberta da Noemi, a porção feminina que todo gaúcho carrega naquele espaço espremido entre o ego e o id, nos fundos do superego. Cá entre nós, ele tem razão, mas acho que deveria se chamar porção Creuza. Pois bem, tenho tentado aperfeiçoar esse conceito e explicar todos os porquê da Creuza. Em outras palavras, como é que cada gaúcho segura a rédea firme e curta pra manter sua Creuza num andar seguro, pois se largar é ela que encilha o vivente.
È como eu sempre digo: mulher sardenta, cavalo passarinheiro e uma Creuza sem freio, alerta companheiro!
Mário Corso: E como é que o Sr. lida com a sua parte Creuza?
Taurino Netto: Tu sabe por que é que todo gaúcho anda de faca na cintura? É pra usa quando uns boi corneta insistem numas perguntas que não lhe dizem respeito. O cuidado de cada Creuza é assunto particular de cada gaúcho. Mas vou te dar uma opinião geral: na minha opinião manieta no tranco, é que vira o fio e faz a vaca ir pro brejo. O certo é aprender a conviver, na maioria das vezes é coisa pequena, não mais que um brinco na orelha. Muitas vezes é aqui entra o analista, pra apartá a peleia da Creuza com o resto do ego do vivente. E não é só ela, eu sustento que existe a porção Pedrão dentro de qualquer prenda. Pode ser a mais "sim senhor" e "com licença" das prenda e ela tem um Pedrão, que se não for domado, põe no cabresto o homem mais perto. Isso se o Pedrão dela já não tomou conta e se bandeou pros lado de ser Pedrão de outra prenda.
Mário Corso: Já que estamos no tema, como que o Sr. vê essa polêmica recente sobre se gaúcho de brinco pode ou não entrar em CTG?
Taurino Netto: Pessoalmente nunca usei, não uso e não usarei, se me virem de brinco pode me internar por que estou em surto psicótico. Agora, quanto aos outros, por mim tudo bem, é a sua porção Creuza se manifestando. Se quiserem podem até se vestir de prenda, mas tem uma coisa, depois não me vem reclamar...
E tem mais um porém, como eu só tenho uma dúvida no vestir, se é dia de bota ou de alpergatas, posso dizer: não é a pilcha que faz o gaúcho, senão qualquer mequetrefe poderia ser. O gaúcho é como uma faca, vale pelo fio, não pela bainha.
Mário Corso: Então lhe parece que o gaúcho tem um algo a mais, uma essência?
Taurino Netto: E como que não! Como Freud já dizia: Ein Gaucho zu sein ist eine Weltanschauung. (Ser um gaúcho é uma "pampavisão"). Olha esse mundo em reboldosa em que vivemos, e me diz se o alemão de Viena não tinha razão. É só entrevero e estrupício por todos lados. Nosso gaúcho é o único que não caiu do cavalo. Eu é que não saio do Passo Fundo.
Mário Corso: A que o Sr. atribui essa força do gaúcho?
Taurino Netto: Pois veja, penso que o gaúcho é um peleador também por causa do chimarrão. O mate é como a vida, é amargo mas a gente vai se acostumando até que fica bom e ainda clareia as idéia e as urina. Aliás, uma análise também é assim, o vivente tem que passar pelo momento amargo pra voltar a achar a vida doce. A vida é dura, como diz nosso filósofo passofundense Ernildo Pedroso: "o ser é uma faca sem cabo em que se perdeu a lâmina". Ou seja, no fundo somos coisica de nada, nosso destino é campear um sentido nesse grande pampa sem porteira e varrido pelo vento que é a vida.
Mário Corso: E porque o Sr. se chama de lacaniano?
Taurino Netto: Até que prum francês esse tal de Lacan sabia onde moravam as corujas. Vai muito do jeito, um analista sabe quando o outro é guapo e não se micha pra pega louco pelas guampa. E tem mais, pois não é que ele diz que: a mulher não existe. É o que eu sempre insisti, o que existe é a prenda.
Mário Corso: O que o senhor votou no plebiscito do desarmamento?
Taurino Netto: Votei pelo Sim. Gaúcho resolve as coisas na palavra. Apenas, se a coisa preteia é que se apela pro facão. Penso que revolver é coisa pra se apontar só contra castelhano.
Mário Corso: Dr. Taurino, para encerrar, uma pergunta já no estribo, como é que fica o gaúcho frente à globalização?
Taurino Netto: Cada dia melhor, é bom para nós, ou como é que de outro jeito vamos levar os ideais do Rio Grande mundo afora. Como o mundo vai nos tomar como modelo se não nos conhece? Nós já temos CTG no Japão, só vamos parar quando já tiver CTG de esquimó.
Publicado no Jornal Zero Hora, Caderno de Cultura, em 14 de janeiro de 2006.